quarta-feira

Presidente por um dia

Era a assembléia geral do condomínio. Para começar, disseram que era preciso eleger um presidente. Quem se voluntariava? O silencio respondeu: ninguém desejava aquele cargo. Por fim, o meu nome soou na boca do povo. Patrícia, você vai ser presidente, venha. Atendendo a pedidos, fui. (Seria aquilo democracia ou ditadura?) Perguntei o que fazia a presidente e, para a minha surpresa, me disserem que nada, o presidente não faz nada! Meio decepcionada, assumi o posto na cadeira designada. Como presidente, queria mostrar a minha inteligência, meu bom senso, a minha visão de futuro.
Com o cargo preenchido, a reunião pode começar, legalmente. Me pediram para ler a ata da assembléia - ah! eu tinha uma função. Antes de terminar o parágrafo de três linhas, fui interrompida. O síndico começou a explicar animadamente como tinha sido o último biênio sob a sua administração para a platéia pouco entusiasmada. Quando o assunto partiu para contas, gastos, investimentos, valores e livro caixa, os proprietários ficaram inquietos nas cadeiras de plástico brancas. O Sr. Rolf (talvez o morador mais idoso do prédio) tomou a palavra e, com seu sotaque simpático de alemão fugido da Segunda Guerra elaborou uma pergunta que não teve grande impacto. De meu lado, como proprietária e principalmente como presidente, senti um forte ímpeto de dizer alguma coisa importante. Então perguntei sobre o balanço geral das contas, o que deixou o síndico confuso. Fabrício, candidato a sub-síndico e meu vizinho de porta, veio em meu auxílio para explicar. "Acho que o que a Patrícia quer saber...." Essa introdução já me deixou desmoralizada. Será que as pessoas não entenderam à minha pergunta? E ele continuou me traduzindo.."´é se as contas estão equilibradas." Essa intervenção parece ter esclarecido a questão para todos os presentes, que por sua movimentação de cabeças indicavam que a pergunta era relevante. E eu me senti uma presidente dando bola dentro.

Infelizmente, o meu momento de glória e poder parou por aí. As explicações do síndico foram muitas, e muito boas de fato e, por falta de outro candidato ele foi eleito para mais um mandato - para alívio de todos os participantes que ansiavam voltar para o conforto de seus apartamentos.
Me pediram para encerrar a sessão, o que eu fiz já com pouco gosto pela função. Uma discussão rápida sobre “janelas padronizadas nas sacadas” começou em seguida e o meu vizinho me chamou de Presidente Banana por não ter interferido na querela. Indignada, comecei a entender melhor a posição delicada do Lula – primeiro, dizem que Presidente não deve fazer nada, só se sentar na cadeira. Enfim, quando o Presidente não faz nada, dizem que é um banana. Sinceramente, não é fácil agradar o povo!

Alheira



- Viva N. Sra. De Fátima!
- Viva !!!

A imagem da santa, carregada por quatro homens morenos, vestidos de portugueses, descia a rampa devagar. Atrás dela, três senhoras, também vestidas à portuguesa, lançavam pétalas para a Virgem.

Lá na gruta, velas votivas, às dezenas, iluminavam o escurinho com a chama dos seus pedidos, roubando o oxigênio do ar que levava as mensagens pro céu. No pátio, os galhos de uma árvore que já teria muitos anos, protegiam os pastorinhos de Fátima, ajoelhados diante da imagem que contava segredos a seus ouvidos.

Era o último dia da comemoração em Sua homenagem e, mesmo àquela hora da noite, as gentes não paravam de chegar ao espaço grande, com clima familiar.

Rodeada por seus devotos, a Mãe de todos quase completava a volta na quadra. Manto branco e rosário nas mãos, pele alva e olhar tristonho, Ela mantinha um sorriso lindamente coquete no rosto angelical. Tive vontade de ir ter com Ela! Abri caminho com os ombros e, atrapalhando o caminhar da pequena procissão, toquei os seus pés, agradecida.

- Viva N.Sra. de Fátima!
- Vivaaa !!!

A santinha voltou para o seu lugar no altar, me deixando naquela festa que não era minha. Transportada para outras terras, fui até uma das barracas da quermesse com vontade de pedir mais um sabor de Portugal. Olhei praquela gente ainda trabalhando animada e pedi:
- Uma alheira, por favor!


Um dia no meio da semana


Era inverno. Do lado de fora, o céu azul claro e sem nuvens dava o timbre de uma temperatura baixa, que sugeria ombros encolhidos à sombra e relaxados ao sol. A semana estava corrida e eu encontrei uma brecha para deixar o negativo do meu curta-metragem na Cinemateca. Entrei naquele templo sagrado dos filmes em película com as três latas, já meio enferrujadas, dentro de uma sacola de algodão cru e fui até o prédio que fora transformado em biblioteca. As estantes com revistas de cinema foram as primeiras a me dar as boas vindas. Uma mocinha simpática olhou amavelmente para mim e eu disse:


- Gostaria de deixar o meu filme no acervo.

Ela chamou um garoto com jeito de estagiário e pediu que ele me levasse ao outro prédio. Eu e o João seguimos lado a lado e enquanto a gente subia pelo caminho eu percebia nele a soltura que só tem quem está gostando do trabalho que faz. Ele me deixou na frente de um galpão grande, de porta vermelho vivo, e tchau. Assim que eu coloquei os pés naquele novo ambiente, o cheiro peculiar da química que conserva os filmes me levou até os meus primeiros anos de cinema, quando eu manipulava os negativos de 35mm com luvas brancas de algodão, para não riscá-los, exatamente como estava fazendo aquele homem bonito: girar a manivela na enroladeira num ritmo cadenciado, produzindo um rolo perfeito, que traduz o respeito pelas dezenas de profissionais que se dedicaram para realizar aquela obra cara, querendo contar uma história para outros.

O lugar era espaçoso e bonito, cheio de pessoas em ocupações ligadas ao cinema, conversando, ou concentradas em suas tarefas. Senti vontade de ficar ali, feliz para sempre. Deixei o meu curta, precioso, nas mãos de uma funcionária jovem e moderna. Preenchi uma ficha, assinei e fui, segura de que o meu filme será bem cuidado. Mas eu não queria ir embora. Desci permeando o terreno irregular, que foi matadouro, onde teve até campinho de futebol e parei numa murada que resistiu à reforma, olhando os prédios que compõem de maneira tão singular aquele conjunto que se chama Cinemateca. Andei até o jardim, onde tenho um pé de goiaba favorito, e me deitei debaixo dela, sobre a grama. E, naquela tarde de um dia no meio da semana, me entreguei, agradecida, ao abraço morno do sol de inverno, sem pensar em nada.

O rapaz era angolano

Minha melhor amiga aluga quartos na sua casa e, para fugir do cheiro de tinta fresca do meu apartamento, pedi abrigo a ela. O único lugar vago era uma cama no quarto de um rapaz angolano. Decidi aceitar.

Cheguei à noite, no final de um dia paulistano de trabalho, no meio da chuva, com minha malinha. De um dos quartos saiu Ziad, um libanês de olhos intensos, cabelo raspado e cavanhaque preto. Tentei puxar conversa com ele, conhecer a sua cultura e os motivos que o trouxeram ao Brasil, mas ele ficou desconfiado, falando em evasivas. Quando Luiz, o namorado da minha amiga chegou, Ziad abaixou a guarda e ficamos os quatro tomando vinho tinto e descobrindo os segredos do babaganuch e da verdadeira culinária libanesa. Em sua homenagem assistimos "A Noiva Síria", um dos três dvds alugados para a noite. Depois da diversão, o cansaço chegou.
No andar de baixo, arrumei a cama de baixo do beliche e, assim que liguei o chuveiro, percebi pelo ruído da porta se abrindo, que o dono do quarto tinha chegado. Quando saí, ele estava sentado na cama, sem camisa e de bermuda. Apesar do frio. Mas era eu a intrusa em seu universo e devia explicações.

- Me desculpe aparecer assim, mas vou dormir aqui esta noite, é que estão pintando a minha casa. Espero que você não se incomode. Não se preocupe que eu não ronco, nem falo dormindo, você nem vai perceber que eu estou aqui.

Achei o seu porte físico pequeno para um africano. Sempre imaginei os homens de lá grandes e fortes. Mas o Denery (era esse  o seu nome) parecia um menino com seu sorriso permanente e aparelho nos dentes. Eu já estava vestindo o meu pijaminha listrado, pronta para ler um pouco antes de dormir, mas me senti na obrigação de ser gentil.

(a ser continuada)