terça-feira

Perfume de Gardênia

Uma brisa leve entra pela janela aberta. Sinto perfume de gardênia, de flor de liz, de novidade. Um arrepio quente sacode de leve o meu corpo. Sinto vontade de sair. Nuvens carregadas passeiam pelo céu. Um cheiro de terra molhada transpira dos canteiros de São Paulo. De uma hora pra outra, as cores explodem, as saias encurtam, os vestidos rodopiam nos cabides, os dedos dos pés ficam pra fora. O que é isso, que deixa tudo mais lento e ao mesmo tempo mais urgente? É uma correria sem saber por que, e as horas não alcançam nada. Acho que a proximidade do verão deixa o mundo assim. São os ares de fim de ano chegando.

Cena

Cortei de uma talagada só a coroa espinhuda e fiquei com o corpo de escamas ásperas na mão. Tirei a tampa do abacaxi e cortei a base. Comecei o trabalho de passar a faca afiada entre o limite invisível da casca dura e repelente e o interior suculento e macio. A lâmina despetalava a fruta manchada de tons de verde, e a polpa amarelo-dourada deixava escorrer seu suco pelo fio. O cheiro forte de fruta tropical invadiu minhas lembranças. Salivei um desejo de sabor e doçura. A travessa branca esperava. Deitei no seu cumprimento o dominó de grossas rodelas. Salpiquei folhas frescas de hortelã e levei a sobremesa para a geladeira. A campainha tocou e lá fui eu abrir a porta para meu primeiro convidado.

A Batata da Onda

- Cooooooooooooooooorta! Ô meu filho, mais entusiasmo nessa interpretação, faz favor! Vamos lá. Luz!

- Ok.

- Camera!

- Ok.

- Som!

- Ok.

- Claquete?

- Cena 2, tomada 43.

- Ação!

- Batatinha quando nasce/

- Cooorta! Não, não, não. Você tem que entrar com tudo entendeu? Isso aqui é um drama! Lágrimas, dor, conflito! Entendeu?

- Mas...

- Pense no texto! Sinta o texto! Interprete o texto!

- Mas...

- Ok. Outra. Luz!

- Ok.

- Câmera!

- Ok.

- Som!

- Ok.
- Claquete!
- Cena 2, tomada 44.

- Ação!

- Batatinha quando nasce, se esparrama pelo chão/

- Corta. Corta. “Se esparrama” assim ó: gestos, body language, espaço. Olha o cenário! Você está em uma plantação de batatas. Movimente os braços. Eu quero que você sinta o espaço à sua volta. Ar puro, céu azul, batatas! Entendeu? Vamos lá! Mais uma vez! Concentração! Pense nas batatas.

- Certo, batatas.

- Atenção....Silêêêêêêêêncio no estúdio! Ô produção! Manda a figuração pra fora. Manda comer lanche, eles estão atrapalhando o sim direto! Atenção! Vamos lá! Emoção, não esquece! Braços, campo, ar puro, drama! Entendeu? Atenção, luz!

- Ok.

- Camera!

- Ok.

- Som!

- Ok.

- Claquete!

- Cena 2, tomada 45.

- A maquiagem do ator ta derretendo, pô! E a peruca tá torta. Produção me traz uma água gelada. Traz pro ator também.

- Água gelada faz suar mais.

- Então traz um chá quente! Rá rá rá!

- Maquiagem ok!

- Cabelo pronto!

- Todo mundo pronto aqui? Atenção, luz!

- Ok.

- Câmera!

- Ok.

- Som!

- Peraí que tem um helicóptero passando.

- Não esquece meu filho: drama! Espaço! Entendeu? Tá pronto som?

- Agora tem alguém gritando lá fora.

- Produção! Cadê o pessoal da produção?!

- Pronto, calaram a boca. Som ok.

- Atenção claquete!

- Cena 2, tomada 45.

- Aaaaaação!

- Batatinha quando nasce, se esparrama pelo chão, a menina quando dorme, põe a mão no coração!

- Ok! Perfeito! Lindo! Grande interpretação!

- Posso ir?

- Pode, pode.

- Produçãããão!

- Oi.

- Cena da dança. Chama as batatinhas.


PUBLICADO NO LIVRO “NOVELAS ESPELHOS E UM POUCO DE CHORO”, ATELIÊ EDITORIAL

Cidade Grande

Cidades grandes são incríveis. A maioria das pessoas vive em casas fechadas e sobrepostas. E são tantas e tão altas que parecem que arranham o céu.


Milhões de pessoas nervosas circulam nas ruas das cidades grandes, e vivem tão atrasadas que não tem tempo de olhar para o céu.


Cidades deste tipo são excelentes lugares para trabalhar, ganhar dinheiro e gastar dinheiro em roupas de grife e carros chiques.


Depois do trabalho, no trânsito de volta para as casas sobrepostas, onde chegarão para assistir notícias desanimadoras na tevê, as pessoas que vivem nas cidades grandes preenchem suas mentes e corações carentes com o trabalho que farão no dia seguinte, para ganhar bastante dinheiro e gastar com roupas de grife e carros chiques.


É realmente incrível a vida nas cidades grandes.

Travessia

O carro segue serpenteando pela estrada estreita, cheia de sobe e desce. Depois de muito tempo de só mato pelos dois lados, faz-se uma curva fechada como cotovelo. Em seguida é preciso pegar embalo para enfrentar a subida íngreme que vem pela frente. Ainda assim, só engatando uma primeira marcha se consegue chegar ao topo, lentamente, sem pressa.


Lá em cima, à direita, a imensidão do Oceano Atlântico se descortina em todo o horizonte, e provoca como um choque em nossa pequena existência. A paisagem bonita demais começa a acompanhar a gente.

O trecho da serrinha vai e vem em ora sombra e quietude outra hora um grito de luz. A beirada da esquerda, toda bordada de marias-sem-vergonha vermelhas, cor-de-rosa e brancas, segue alegre até o perímetro urbano, onde São Sebastião indica o caminho da balsa.

Atravesso o mar verde esmeralda, o vento salino umedece meus cabelos livres, enquanto vai soprando minhas preocupações para trás.