sexta-feira

Adolescendo

O sino da minha escola tocava às 8 da manhã, mandando os alunos entrar, mas meu ritual para chegar no colégio começava bem antes.

Embrulhada em sonhos, pés descalços espetados para fora da coberta macia, eu era acordada por meu pai, que entrava sem ser ouvido no meu quarto e acariciava com seus dedos bonitos, a planta suave dos meus pezinhos. Era um chamado delicado, que me tirava do mundo macio dos travesseiros para a vida nebulosa das 6 da manhã.
Minha mente acordava com delícias que uma garota adora. O doce mamão bahia, leite quente com chocolate, requeijão na canoa do pãozinho crocante, fazendo par com geléia de uva, morango ou ameixa.
Todos os dias, durante dez anos, às sete em ponto, a perua do Seu Fernando parava em frente à minha casa e buzinava três vezes. Eu corria, atravessando os cômodos com a maleta pesada nas mãos, meia três-quartos escorregando pelas panturrilhas, girava a maçaneta de bronze e fechava a porta de madeira maciça com um blam definitivo.

A vida na escola tinha uma intrincada rede de relacionamentos sociais, deveres de casa, professores severos, obrigações e inseguranças. Eu não fazia parte do grupo das meninas bonitas, nem do valorizado mundo dos esportes, seus times e viagens para conquista de medalhas.
Quando comecei a pensar em meninos, os mais disputados da classe faziam parte de meu universo de fantasias mais distantes, como a de ser a primeira mulher a ter um filho na lua. Essas factualidades me torturavam suave e persistentemente, como uma farpa presa debaixo de uma unha.

O que me salvava de tudo era a minha bicicleta. Eu adorava pedalar. Voltar para casa, sair pelas ruas do meu bairro, escapar para o parque e me perder nas trilhas sombreadas por eucaliptos, fazer o vento soprar no meu rosto. Essa era a minha liberdade conquistada, minha chance de ser eu mesma. Com a bicicleta, a minha alma de menina virando gente descobriu a sensação - que não dava para descrever de tão gostosa, de pedalar sem destino, com o instinto de conhecer coisas novas empurrando para frente. A bicicleta, eu sabia dominar.

Nessas lembranças distantes da infância, teve uma sexta-feira sem deveres, em que duas coisas muito diferentes aconteceram no mesmo dia. Uma delas foi o comentário do Gregory Derian, o menino de cabeleira loira feito palha que, na volta do recreio, se chegou ao meu lado, me acompanhando do pátio até a sala de aula, e para repente falar,

- Você está fazendo regime? Está tão diferente...

Percebi as reticências no final da frase e corei. Intuí que alguma coisa estava mudando.
Mas do mesmo jeito que sempre, voltei da escola para casa, troquei o uniforme cinza,
o sapato preto, as meias corretas, pelo shorts, camiseta e tênis e corri para a bicicleta vermelha, que me esperava pacientemente na garagem. Montei, já sentindo as alegrias da liberdade me atravessar.

Era uma tarde de sol e de calçadas e ruas silenciosas. Eu e minha bicicleta passamos voando pela rua Mondego, tão rápido que os cães modorrentos nos olharam surpresos, sem tempo para latir. Eu ri, divertida, com aquela alegria infantil que tira muito de quase nada, e segui ziguezagueando pros lados da farmácia na Pedro de Toledo. Fiquei assim, conquistando territórios até o dia quase acabar. Quando fui voltando para casa, alma livre e lavada, dobrei a esquina da praça e soltei o guidom entrando de volta pela rua Mondego. Um moço caminhava devagar, talvez saindo do trabalho, e quando eu passei por ele sua mão desconhecida e áspera apalpou o meu seio de lolita. Nos poucos metros que me separavam de casa, minha alma de criança foi se explodindo e despedaçando em mil pedaços. Quando abri o portão, chorando, eu já não era mais a mesma.

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